A ciência da sinceridade
O Tratactus de Computis et Scripturis (“Contabilidade por Partidas Dobradas”), do frei Luca Bartolomeo de Pacioli, publicado em 1494, estabeleceu um conceito inexorável: para cada débito deve existir crédito equivalente. A sábia fórmula já era válida na Idade Média, quando viveu o antológico frade toscano, reconhecido como o pai da contabilidade. No contexto da sofisticada economia contemporânea, sua releitura é ainda mais pertinente: para cada aplicação de recursos é preciso haver sempre a fonte identificada.
É exatamente por conta desse indefectível e emblemático conceito basilar que a ciência contábil floresce e se desenvolve satisfatoriamente quanto mais democrático for o país. Balanços publicados dão a exata dimensão do desempenho das organizações. Se os lucros dos bancos são maiores do que a soma dos obtidos pelas outras empresas listadas na Bolsa de Valores, logo se conclui que os juros cobrados estão elevados e sugam parte da saúde financeira dessas firmas. E mais: a política monetária é alterada em função dessa informação. Se o balanço das contas da previdência indica despesas maiores do que as contribuições, é fácil prever que o sistema estará comprometido. Imaginem informações dessa natureza em ditaduras. Tiranos em geral controlam seu povo sem lhes dar condições de divergir. Regimes políticos fechados não querem nem balanços, muito menos contas publicadas. A contabilidade pública, então, nem se fale! Quanto mais complexa e menos inteligível, menor o número de cidadãos acessando, entendendo e questionando. Afinal, trata-se da ciência da sinceridade e da transparência, que contribui para a consolidação da democracia, pois é através dela que a sociedade conhece de modo claro e permanente o que se passa nas empresas e no Estado.
A relevância do contador é de tal ordem, que em países como a Inglaterra o orçamento do governo é sempre assinado por um desses profissionais e entregue ao Parlamento pelo primeiro ministro, em ato de grande visibilidade pública. Jornais e revistas são editados para debater o orçamento e programas de televisão e de rádio passam temporadas tratando do tema pelos cidadãos comuns. Ser contador no Reino Unido tem tal significado que até pouco tempo atrás era a rainha quem entregava solenemente a carteira profissional.
Porém, por que no Brasil a contabilidade não foi tratada da mesma forma que nas nações desenvolvidas? Por que os nossos jovens não se entusiasmam pela carreira? Afinal, paga-se muito bem, o mercado está sempre demandando esse profissional e ele pode ser um empresário se quiser. Parece que a profissão perdeu parte da sua relevância durante a ditadura militar. Informação clara e boa não era exatamente o que se queria levar à sociedade naquele momento. O outro aspecto que parece ter também perturbado o interesse pela ciência contábil foi a inflação descontrolada dos anos 70 e 80 e parte dos anos 90. Durante quase três décadas, nossos bravos contadores ficaram de cabelos brancos, cuidando de corrigir monetariamente os balanços para que as empresas e o país se mantivessem governáveis. Sem falar na interferência do fisco, que fazia da contabilidade o seu instrumento para calcular e taxar.
Parte das mudanças veio com a Lei das Sociedades por Ações, de nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, iniciando-se um processo de arejamento da contabilidade brasileira, possibilitando a abertura do mercado de capitais e viabilizando recursos da poupança nacional para as empresas privadas. Mais recentemente, a lei 11.638, de 28 de setembro de 2007, estabeleceu a convergência, adequando a contabilidade às normas internacionais. Assim, passamos a ter um padrão mundial. Hoje, o balanço feito no Brasil é o mesmo de todo o mundo.
A grande missão da contabilidade desde os conceitos delineados pelo frei Luca Bartolomeo de Pacioli, é estabelecer a figura da responsabilidade no trato da coisa pública e privada. Este elementar princípio, que ele descreveu em 1494, basicamente instituiu uma nova ordem econômica, que indicava ser impossível que uma pessoa pudesse aplicar um recurso sem ter a sua origem definida e calculada. Quando não se respeitam tais pressupostos, tende-se a montar orçamentos que não fecham, contas que não batem e empresas e países que quebram. Nações incapazes, inclusive, de cumprir minimamente as práticas ligadas à sustentabilidade, que não podem mais ser desvinculadas dos processos de crescimento econômico. Observou-se isso, recentemente, nos debates e conteúdos da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20.
A contabilidade, como vimos, confere muito mais transparência às ações e aos balanços das atividades produtivas, permitindo que os distintos setores — agricultura, indústria, serviços e sistema financeiro — respondam de modo mais eficaz à crescente exigência da sociedade quanto à ética, correção e seriedade do universo corporativo. Os mesmos parâmetros aplicam-se às contas do setor público e na gestão orçamentária, financeira e patrimonial do setor público. Ao oferecer condições mais adequadas e informação fidedigna para subsidiar a segurança dos negócios, a transparência e a ética no setor estatal, a ciência contábil torna-se, cada vez mais, elemento fundamental para o sucesso das metas preconizadas no chamado tripé do desenvolvimento sustentável (social, econômico e ambiental), apresentando-se como fator decisivo para a promoção do progresso sob as mais contemporâneas demandas de nossa civilização.
Empresas sólidas, com balanços financeiros reais e confiáveis, e governos com responsabilidade fiscal, gestão eficiente e proba têm maiores possibilidades de gerar renda e empregos e de prestar serviços essenciais de qualidade nos campos da educação, saúde e habitação. Assim, ampliam-se as possibilidades de se promover a inclusão social de maior contingente de pessoas e se viabiliza investir mais recursos no atendimento à população e no bem-estar da sociedade.
Ademais, Estado e mercado financeiramente saudáveis podem investir de maneira mais efetiva na chamada economia verde, na produção limpa, recuperação dos biomas e ecossistemas e na preservação ambiental. Conciliar produção com os preceitos fundamentais da ecologia exige investimentos vultosos e toda uma mudança cultural, que somente a estabilidade econômico-financeira tornará efetivamente viável.
Por todas essas razões é que, ao contrário do que ocorria no transcurso dos regimes de exceção e nos tempos em que sustentabilidade era um termo ainda inexistente, no Brasil de hoje, no qual prevalecem os valores do capitalismo democrático e as metas da inclusão social e do crescimento harmonioso com a ecologia, a contabilidade floresce e se posiciona como atividade cada vez mais relevante. Trata-se de fator decisivo para atribuir credibilidade aos setores público e privado, criando base importante de sustentação para nosso progresso.
Por tudo isso, é fundamental a formação de novos contadores altamente capacitados no plano técnico e conscientes de seu papel no processo de desenvolvimento do País. Que os jovens passem a descobrir essa emocionante profissão!
*Antoninho Marmo Trevisan é o presidente da Trevisan Escola de Negócios, membro da Abracicon – Academia Brasileira de Ciências Contábeis e do CDES – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República.