Artigo vencedor: II Concurso de Artigos – Mulheres na Gestão do Esporte

Mulheres na Gestão do futebol masculino brasileiro, o que elas têm a dizer

Nathália Cavalcanti

Resumo:

Historicamente, a inserção e permanência no mercado de trabalho teve que ser arduamente conquistado pelas mulheres e tal situação não foi diferente no mercado esportivo, mais especificamente no futebol – um esporte tradicionalmente feito por homens e para homens. À vista disso, o objetivo desse estudo é compreender a atuação delas em cargos de gestão no futebol profissional masculino brasileiro, por meio das suas trajetórias. Para tal, foi feita uma pesquisa qualitativa de caráter interpretativo do trabalho acadêmico de Monique Torga, além de realizar entrevista semiestrutura, com três mulheres que ocupam neste ano de 2023, cargos de gestão no futebol. Observou-se que a participação delas nestes cargos ainda é discreta, que ainda há forte desigualdade de gênero; que os desafios são constantes devido ao preconceito e que o futebol ainda se manifesta como um meio difícil de ser modificado. Conclui-se que as mulheres atuantes no futebol masculino brasileiro representam uma resistência ao ocuparem esses espaços e que as mudanças, melhorias e iniciativas para virar esse jogo, ainda são tímidas e andam a passos lentos.

Palavras chave: mulheres, gênero, futebol, esporte, gestão esportiva.

1 Introdução

Nas últimas décadas do século XX, ocorreram diversas alterações demográficas, culturais e sociais que foram transformadoras para as mulheres no que tange a ocupação dos espaços públicos e ascensão profissional em diversa áreas. No entanto, essa ascensão trouxe consigo alguns ônus que merecem ser mencionados, como a dupla jornada de trabalho, visto que a ampliação da mulher no trabalho fora de casa não correspondeu à divisão das tarefas domésticas.

Nesse sentido, também se pontua a desigualdade de gênero, haja vista que, historicamente, homens e mulheres não foram submetidos às mesmas oportunidades de trabalho e ascensão profissional. Observa-se o princípio de hierarquia, que atribui maior valor social ao trabalho masculino em detrimento do feminino (TORGA, 2019). Dessa maneira, muitas dessas mulheres que optaram por seguir sua carreira profissional, encontraram e ainda encontram barreiras – como a desigualdade salarial – para atuar em vários campos e no caso desse estudo, o da gestão esportiva.

Assim sendo, este artigo se propõe a estudar, levantar reflexões e busca compreender os sentidos e contexto que as mulheres atribuem à sua participação na gestão esportiva, a partir da análise de suas trajetórias profissionais em cargo de liderança do futebol profissional masculino.

Para fomentar a argumentação desse artigo, foram utilizados mais de um método de pesquisa. O primeiro método consiste em uma pesquisa qualitativa de caráter interpretativo de um trabalho acadêmico, de autoria de Monique Torga. Trata-se de uma dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação Física da Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação Física, cuja o título é Com a palavra, as gestoras: a trajetória de mulheres em cargos de gestão nos clubes de futebol do Brasil. O levantamento desse trabalho foi realizado através de pesquisas no Google acadêmico utilizando os descritores “mulheres na gestão do futebol” e “mulheres na gestão do esporte”. Esse tipo de revisão bibliográfica possibilita identificar as lacunas científicas, a necessidade de novos estudos, as principais teorias e conceitos em relação ao tema, além de estabelecer relação entre trabalhos de diferentes áreas do conhecimento (RUSSELL, 2005). O segundo método consiste em entrevista semiestruturada de mulheres gestoras em atuação no futebol masculino nacional, optando-se por prezar pela objetividade na realização das mesmas, uma vez que a elaboração e entrega desse artigo é de curto prazo. Posto isso, a escolha das três mulheres entrevistadas, se deu pela facilidade de relacionamento, importância de cargo atual e relevância de trajetória profissional de acordo com o tema central desse artigo. O formato das entrevistas também acompanha essa objetividade, que foi realizada de maneira virtual, por meio de aplicativo de mensagem instantânea, chamado Whatsapp. Optou-se pelo não uso de um roteiro de perguntas, portanto, foram elaboradas duas perguntas para cada entrevistada, de acordo com sua ocupação profissional. O método de entrevista semiestruturada permite identificar as principais características, desafios e dificuldades da atuação feminina na área da gestão esportiva e observar o fenômeno investigado, de desigualdade de gênero, visando reforçar a necessidade de ações para promover a equidade deste.

2 Contextualização da Gestão Esportiva

Nolascos et. al. (2006) apresenta um histórico sobre a gestão esportiva, onde cita que as primeiras abordagens sobre esse tema e essa função no Brasil ocorreram no ano de 1906, onde os gerentes da Associação Cristã de Moços do Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP) e Rio Grande do Sul (RS) se reuniram para discutir sobre a gestão e o treinamento. A Associação teve papel fundamental na criação de esportes, como o basquetebol e o voleibol até sua introdução nas olimpíadas. A presença e influência militar também foram fundamentais para a ascensão da administração esportiva desde a década de 1930. Em 1980 foi introduzida a disciplina de administração esportiva nas primeiras faculdades do Brasil, sendo elas a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Universidade Gama Filho (UGF). Nos anos de 1994 e 1995 surgem as primeiras linhas de pesquisa nessa área, com isso o desenvolvimento da gestão esportiva começa a alavancar, criando leis, cursos, estatutos. Importante ressaltar que Em 1998, foi publicada a Lei Pelé (n° 9.615) que, dentre várias regulamentações importantes, ressalta simultaneamente a necessidade de profissionalização dos clubes e a demanda por cursos de Administração Esportiva no país (Atlas do Esporte no Brasil, 2005).

No início dos anos 2000, a Secretaria Nacional de Esporte do Ministério do Esporte implementou o projeto Gestão Esportiva, com o objetivo de “capacitar, através de palestras e cursos de qualificação profissional, recursos humanos, visando a melhoria gerencial do esporte brasileiro”. Talvez por enxergar a baixa oferta de profissionais qualificados para atuar nesse âmbito; onde Karnas (2010) afirma que o conteúdo e disciplina oferecido pelas faculdades, isto é, a formação obtida na educação física não é suficiente para aqueles que trabalham na área, sendo que na maioria dos casos houve a necessidade de complementar com algum conhecimento específico da área. Desde então surgem diversos cursos específicos de gestão esportiva, que deixa de ser apenas uma disciplina no curso de educação física e ganha corpo de um curso acadêmico completo e multidisciplinar.

2.1 A gestão no futebol

O futebol se tornou o esporte mais popular em todo o mundo e o Brasil é o país que mais fornece atletas de alto nível para diversos países. Atualmente, é mundialmente conhecido e respeitado por este motivo, cuja as grandes movimentações financeiras o torna uma potência econômica no meio esportivo. Palco de uma paixão exacerbada por parte dos torcedores, o esporte mais praticado no mundo está fortemente enraizado na cultura brasileira, traz em seu histórico um percurso de evoluções e regulamentações que o torna este grande mercado de bens simbólicos que representa hoje (TORGA, 2019, p.22).

Já faz algum tempo que o futebol no Brasil deixou de ser um mero esporte de lazer e passou a ser um produto valioso de um mercado rico e exigente, necessitando de profissionais altamente capacitados para o gerir com maestria e alcançar os objetivos almejados, visando sobretudo o lucro. Assim nasce a importância de entender sobre Gestão Esportiva, como Torga cita Gomes:

A gestão esportiva pode ser entendida como um conjunto de conhecimentos interdisciplinares que se relaciona com a direção, liderança e organização do esporte, incluindo dimensões comportamentais, ética, sociais, legislação e preparação profissional (TORGA, 2019 apud GOMES, 2008).

A história da administração de grandes empresas nos mostra que a gestão organizacional necessita de gerentes transformacionais. Se os gestores do esporte tendem “[…] a tomar decisões baseando-se em fatos e experiências anteriores […]” como aponta Azevêdo (2009, p.936), não é despropositada a relevância de investigar a diversidades na ocupação dos cargos de gestão, procurando compreender a representatividade das decisões e ações.

Não se faz necessário uma pesquisa aprofundada para se perceber que a maioria dos cargos de gestão no futebol são ocupados por homens. Karnas (2010) apresentou estudos que comprovam tal afirmativa, pois o perfil encontrado foi: gestores do sexo masculino, com idade entre 40 a 45 anos, ex-atletas, com formação em educação física e especialização em gestão esportiva, com experiência entre 2 e 5 anos, tendo a gestão como principal ocupação.

Já para mapear as mulheres em cargos de gestão no futebol, Torga fez um levantamento de dados entre os clubes da principal competição nacional de futebol masculino – o campeonato Brasileiro, mais conhecido como Brasileirão – e chega à alguns números interessantes, mas não surpreendentes. A autora considerou as subdivisões A, B e C do campeonato, totalizando em 60 (sessenta) equipes de futebol profissional no ano de 2017. Chegou a 240 (duzentos e quarenta) cargos possíveis entre diretoria executiva e dos integrantes das diretorias de futebol. Desses sessenta clubes e dos 240 cargos possíveis, encontrou uma sub-representação das mulheres, com apenas cinco gestoras no contexto analisado.

Número este tão abismal que nos convida a refletir sobre a importância de iniciativas no contexto do esporte e não somente do futebol, para fomentar o aumento da participação das mulheres em cargos de gestão. De lá para cá, não houve um aumento exponencial expressivo da participação do sexo feminino ocupando esses cargos estratégicos. As dificuldades enfrentadas por mulheres na entrada e progressão em cargos de liderança no esporte têm recebido crescente atenção da ciência, da gestão e das organizações esportivas do mundo todo (BURTON, 2015), como veremos a seguir.

2.2 A participação das mulheres na gestão do futebol

Desde os seus primórdios da prática do futebol no Brasil, as mulheres vêm sofrendo com limitações em seu direito à prática ou atuação na gestão. Como discussão e resultados foi possível elencar as formas de inserção no cargo de gestão, sendo as principais, por convite, condução ou “laços familiares”; os argumentos sobre a restrita participação da mulher na gestão esportiva e suas barreiras encontradas, onde são justificadas por existir um domínio masculino e preconceito, acarretando, muitas vezes a desistência da carreira por essas mulheres. Rocha (2006) justifica essa dificuldade de acesso e ascensão de mulheres aos altos cargos esportivos com a expressão “teto de vidro”, sendo que elas visualizam os cargos existentes, porém essa barreira invisível impede que elas ultrapassem, pela simples justificativa de serem do sexo feminino. Essa divisão sexual perdura até hoje devido ao patriarcado ainda existente na sociedade, uma vez que, mesmo elas possuindo a competência e profissionalismo necessários para a boa gestão, não conseguem ocupar esses cargos (GOMES, 2008).

Outra metáfora em relação às dificuldades enfrentadas por mulheres em cargos de liderança, é proposta por Eagly e Carli (2007). As autoras aplicaram o termo “labirinto” de maneira coloquial como uma formação com múltiplos caminhos, alguns dos quais conduzem ao centro, onde a liderança reside. De acordo com as autoras, alguns caminhos para a liderança são mais diretos do que outros, e alguns caminhos levam a lugar nenhum ou são becos sem saída. Encontrar uma rota de sucesso para o centro, portanto, não é garantida e requer persistência e esforço. Afirma ainda, que o labirinto implica que as mulheres enfrentam desafios durante toda a sua carreira, a partir do momento em que começaram a traçar um curso para a liderança até chegarem ao seu objetivo (CARLI; EAGLY; 2015).

É válido também citar a dificuldade de conciliar a vida profissional e particular. Um estudo realizado por Pfister mostra que mais da metade (61,5%) das mulheres dirigentes eram solteiras ou divorciadas e sem filhos. Verificou que a 43% dessas mulheres líderes era divorciada, contra apenas 13% dos homens nessa mesma situação civil, sendo um dos motivos a falta de apoio do parceiro para essa jornada (PFISTER, 2003). Outro ponto relevante e sensível é a diferença salarial, que ocorre devido ao fato de vivermos em uma sociedade patriarcal, somados à menor oferta de oportunidades e maiores cargas horárias de trabalho, sendo as mulheres, as primeiras a sofrerem queda no posto de trabalho (CARVALHO; GOMES, 2008).

Sob outro enfoque, existe uma diferença significativa entre os sexos quando se fala de liderança, sendo que as mulheres conseguem ser flexíveis para se adaptar ao que for necessário, possuindo humildade para aceitar momentos desmotivantes e ainda possuir grande estabilidade emocional e persistência. Além desses pontos, apresentam disposição para começar de baixo e paciência.

Loden (1988) evidencia a grande capacidade das mulheres em trabalhar no campo da gestão, pois administram de um modo singular, sendo esse fruto de seu aprendizado e levando em conta seus valores, voltados mais para o relacionamento entre as pessoas, buscando sempre a cooperação acima da competição. Com a mulher no poder, busca-se uma comunicação aberta, estabelecendo metas juntos e ouvindo a contribuição do colaborador. Este autor ainda destaca algumas habilidades que privilegiam a competência feminina, como as habilidades de percepção e ouvir, administrar os sentimentos e desenvolver uma harmonia com a equipe.

Importante pontuar aqui que não se trata de uma competição de gênero, em que se deseja chegar a uma conclusão de quem é melhor ou mais forte. Apenas enumerar que ambos os sexos, apesar de possuírem características distintas, podem sim exercer um papel de liderança com excelência, cada um por um caminho ou qualidade diferente.

Tão obstante, ainda se faz necessário incentivos de políticas públicas para aumentar a participação das mulheres em diversos cargos no esporte e, no caso deste artigo, no futebol. Mas é preciso ressaltar que essas iniciativas só terão resultados, de fato, se juntamente com elas, vierem a mudança de mentalidade da sociedade – e isso é mais sobre os homens do que mulheres. Alguns bons exemplos são fundamentais que sejam mencionados aqui; a nomeação da Ana Moser como ministra do esporte em 2023, pelo atual presidente Luiz Inácio. Ela se torna a primeira mulher e primeira ex-atleta olímpica a assumir o comando da pasta, que traz como principal objetivo o incentivo da diversidade no esporte. No futebol, também se obteve um avanço recente nesse sentido, com a nomeação de Luísa Rosa para o cargo de Diretora de Patrimônio da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) em 2022 pelo atual presidente da entidade, Ednaldo Rodrigues. Desde 1914, quando foi fundada ainda com outro nome, a confederação nunca teve uma mulher ocupando um cargo de diretoria.

É notório que são mulheres sendo nomeadas por homens, que possivelmente entendem seu valor e o peso que tal nomeação tem para o início da desconstrução da cultura machista que ainda está enraizada na nossa sociedade, sobretudo na prática e gestão do esporte.

Muito embora esse artigo trata da temática em torno da figura da mulher, é fundamental e indispensável dar ouvidos à figuras masculinas em cargos de liderança, especialmente àqueles que formam equipes, seja através de contratações diretas ou indiretas. Wesley Menezes, 38 anos, solteiro, natural de Brasília (DF), gestor de operações de marketing esportivo, foi procurado para contribuir para a elaboração desse trabalho, via Whatsapp. Perguntado se era um objetivo seu ou da empresa, contratar mais mulheres, disse que quando assumiu o cargo de Gerente de Operações de Marketing para as competições de clubes da Confederação Sul-americana de Futebol (CONMEBOL), por meio da agência oficial da entidade, FC Diez Media, que:

Na verdade, se tornou um objetivo meu ao longo da primeira temporada (2019) quando eu me deparei com a mundo do futebol sulamericano. Nao foi algo premeditado. No final de cada ano, tínhamos que fazer nossa auto avaliação e oficializar nossos objetivos aos nossos chefes. Dentre os meus objetivos já para a temporada 2020, estava o de equilibrar a balança trazendo mais mulheres para o time. Sempre que houvesse empate nas entrevistas, minha preferência seria por mulheres (Wesley Menezes, 38).

Perguntado ainda se houve algum episódio especial em sua vida que o motivou a assumir esse posicionamento, respondeu que “não houve um episódio em particular. Acho que foi mais um detalhe ali e outro aqui que fazem você querer mudar o que não está certo” afirma Wesley.

Perante a fala do gestor e dos exemplos citados acima, é notório que há homens que entendem o poder de mudança que possuem em mãos e respeita a participação das mulheres no esporte, buscando agir para colaborar com a igualdade de gênero. Suas narrativas podem ser observadas como vozes que anunciam novos ares para o esporte brasileiro.

5. O que as gestoras tem a dizer

Monique Torga, ao identificar as cinco mulheres que encontrou no seu levantamento de dados no futebol em 2017, conseguiu entrevistar 04 dessas, que se tornaram objeto de pesquisa do seu estudo acadêmico. As entrevistadas foram Roberta Fernandes, 40 anos, casada, natural do Rio de Janeiro, Diretora Jurídica do Fluminense Futebol Clube; Sonia Andrade, 55 anos, solteira, natural do Rio de Janeiro, Segunda Vice-presidente Geral do Clube de Regatas Vasco da Gama; Myrian Fortuna, 55 anos, casada, natural de Juiz de Fora, Presidente do Tupi Futebol Clube e Dorizelha Rocha25, 62, solteira, natural de Goiânia, Segunda Vice-presidente Geral do Vila Nova Futebol Clube.

Foram longas entrevistas, categorizadas em quatro blocos: (01) a inserção, (02) os desafios da carreira, (03) aspectos particulares do cargo e cenário, (04) oportunidades para o futuro, que possibilitou a chegar em dados interessantes. A respeito da inserção (bloco 1) no clube/cargo, o levantamento realizado mostrou que todas as gestoras possuem um alto nível de escolaridade; suas inserções nos clubes se deram pela identidade de torcedoras. Ainda sobre esse bloco, todas assumiram outros cargos dentro dos seus respectivos clubes antes de assumirem os cargos atuais e todas relatam que recebem grande apoio de uma figura masculina importante e de poder dentro do clube. Já sobre os desafios da carreira (bloco 02), o levantamento realizado mostrou que a maioria cita as questões associadas ao gênero como desafio da carreira; relataram assédio, descrédito, desqualificação, ataques e xingamentos por parte dos torcedores e da mídia. No que diz respeito aos aspectos particulares do cargo e cenário (bloco 03), quando questionadas sobre sua participação nas tomadas de decisões pertinentes ao clube, todas as gestoras relatam ter voz dentro de suas funções; somente uma ocupa um cargo remunerado, as demais exercem cargos institucionais voluntários. Questionadas sobre conciliar a vida profissional com a pessoal, somente uma das gestoras não possui filhos. As demais relatam o peso da maternidade somado à a alta demanda de horas de trabalho fora de casa, viagens e o expediente nos fins de semana.

Para finalizar, as gestoras citam algumas características que consideram fundamentais para se manter em cargos de gestão, como coragem, dedicação, compromisso, a capacitação e o trabalho em equipe para fomentar oportunidades para o futuro (bloco 04). Elas acreditam que o preconceito e a resistência por aceitarem uma mulher no comando, sempre irá existir e que é preciso manter firmeza no propósito.

Seguindo essa mesma linha de entrevista semiestruturada e com a finalidade de tornar este artigo mais atual, é que se propôs também entrevistar outras mulheres em cargos de gestão no futebol. Para contribuir com o estudo, foram ouvidas Leila Pereira, 58 anos, casada, natural de Cabo Frio (RJ), atual presidente da Sociedade Esportiva Palmeiras; Valesca Araújo, 50 anos, solteira, natural de Curitiba (PR), Oficial de Competições da Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA) e Adja Andrade, 39 anos, solteira, natural de Recife, Gerente de Registros e Transferências de Atletas da Federação Pernambucana de Futebol.

Indo contra a fala das gestoras entrevistadas por Monique Torga, a inserção (bloco 01 da pesquisa da autora) no mercado futebolístico de Adja Andrade não se deu por “apadrinhamento” ou relacionamento, mas sim por processos de seleção tradicional para contratação de profissionais.

Todo minha ascensao na carreira se deu por meio de processos seletivos , se torna ainda muito mais dificil, mas isso nao fez com que eu desistisse, pelo contrario, me deu ainda mais forca de seguir sabendo o que eu quero, onde quero chegar. (…) Eu costumo me cobrar muito quanto a isso, por que quando a gente nao é apadrinhado por ninguem, a gente chega onde a gente chegou por merito, por estudo, por batalha, as dificuldades sao maiores (Adja Andrade, 39 anos).

Ao encontro do que foi argumentado no bloco 02 da pesquisa de Torga, Leila Pereira reforça a fala das gestoras ouvidas de que o dia a dia de uma mulher na gestão do futebol de alto rendimento no Brasil, é desafiador. Questionada se ela sente preconceito pelo fato de ser mulher, ela diz:

É uma situação complexa. Por um lado, fui eleita presidente do Palmeiras com uma votação expressiva e muitos dos meus eleitores são homens, que confiaram em mim e nas minhas propostas para o Palmeiras. Por outro lado, acredito que algumas das críticas que recebo se devem ao fato de eu ser mulher. Infelizmente, ainda existem homens que se incomodam em ver uma mulher à frente de um grande clube de futebol. Mas, com trabalho e competência, vamos superar toda e qualquer barreira que ainda possa existir (Leila Pereira, 58).

Valesca Araújo também compartilhar desse cotidiano com muitos obstáculos a serem superados e afirma:

(…) Preconceito por ser mulher fui sentir somente na metade do caminho, à medida que fui conseguindo posições melhores e com mais impacto no sistema do futebol, talvez antes disso não percebesse, porque certamente existiam. A mulher é mais questionada quando esta lado a lado no processo de decisão, buscando as mesmas oportunidades ou posições, e/ou obtendo uma visibilidade que a valide, antes disso, o sistema nos faz crer que o foco deve estar no “chegar lá”. Eu já ouvi desde “você devia usar um terno mais apertado” até “Ela nunca jogou futebol na vida, não sabe o que precisa” entre outras pérolas que se tornam risadas de tão irreais que podem ser consideradas. O preconceito e desconfiança sempre estarão à espreita, em maior ou menor escala, num ambiente que foi talhado por homens para entretenimento de homens há mais de um século atrás. A questão é seguir em frente sem dúvidas de si própria, pois esse ambiente está em transformação e fazemos parte da mudança que virá (Valesca Araújo, 50).

Para elucidar a importância da fala de Valesca Araújo no que tange às particularidades do cargo que ocupa atualmente – fazendo referência ao bloco 03 da pesquisa de Monique Torga – cabe aqui mencionar que esta, ao lado de apenas mais uma mulher, em toda América do Sul, ocupa a posição de Oficial de Partida da FIFA. A própria Valesca entende esse status como uma representatividade que leva a sério, colocando o peso de

Responsabilidade, essa é a palavra no meu ponto de vista. Uma vez que a América do Sul é vista através meu trabalho, cabe a mim mostrar a qualidade que temos aqui para que mais mulheres possam ser consideradas para essa e outras funções. Sempre será um privilegio representar as mulheres do mercado esportivo. Compartilhar o que possa contribuir para o crescimento desse grupo é um dos valores que tenho comigo, pois fazer um evento FIFA é uma experiencia incrível, e desejo que mais mulheres possam desfrutar disso (Valesca Araújo, 50).

Para substanciar os blocos 02 e 03 da pesquisa de Torga, torna-se plausível trazer a fala de Adja Andrade, que aos 29 anos assumiu o cargo de Gerente de Registros e Transferência – que ocupa até os dias de hoje – em que relata que enfrentou bastante dificuldade no início por ser mulher e por ser jovem:

(…) a gente vem provando isso dia após dia. Mas a parte de registro de atletas ainda é sim, muito masculina. São 26 estados, mais o distrito federal e apenas 06 estados tem mulheres a frente do Registro de atletas. (…) senti muita dificuldade no início por parte até mesmo dos meus clubes filiados em aceitar que uma mulher entenda de registro de atletas, de contratos. Mas busquei me aprimorar, estudar bastante, para falar com propriedade do assunto, de igual para igual e fui conquistando o respeito dos clubes. (…) mas tendo que provar o tempo todo que eu sei do que estou falando, que eu entendo do que estou falando, que eu conheco as normas, as regras, as leis. (..) Era normal algum advogado de clube, quando me enviavam o contrato, fazer pergunta do tipo ‘mas você tem certeza que é assim que podemos fazer?’ ‘você tem certeza que o atleta está regularizado?’ ‘será que eu posso confiar e fazer o contrato do atleta dessa forma?’ (Adja Andrade, 39 anos).

Mesmo diante de um cenário desafiador e com tantos obstáculos, todas as entrevistadas enxergam o futuro de maneira positiva, com melhorias nesse processo de aumentar o respeito e a participação das mulheres no esporte, mais especificamente no futebol. Valesca araújo diz que houve mudança para melhor no que diz respeito a esse tema:

Muita mudança, muita evolução, porém, ainda um processo em andamento. Hoje já temos mulheres como referências consolidadas em diferentes áreas de atuação, campo, beira do campo, gestão, comunicação, área medica, entre outras, além da mudança geral em torno do preconceito contra as minorias. Tudo isso contribui com mudanças que permitem que hoje as mulheres possam escolher o mercado esportivo como opção de carreira, coisa que há pouco tempo se considerava uma aposta arriscada ou de grande sacrifício para se conseguir avançar. E esse é a grande conquista do momento, as portas abertas para que mais mulheres alcancem posições de tomada de decisão e mudança de processo (Valesca Araújo, 50 anos).

A presidente do Palmeiras também tem total consciência da importância que sua nomeação tem para contribuir para a igualdade de gênero em cargos de gestão no futebol brasileiro masculino, ela diz, esperançosa:

O Palmeiras tem 108 anos de vida e eu sou a primeira presidente mulher da história do clube. Então, é claro que a minha eleição tem um significado especial, pois demonstra que nós, mulheres, podemos conquistar tudo o que quisermos, que temos capacidade e competência para exercer cargos de liderança mesmo em ambientes predominantemente masculinos. Espero que o fato de uma mulher comandar um dos maiores clubes do Brasil e do mundo inspire outras mulheres a ocupar espaços importantes dentro do futebol e em todos os segmentos da nossa sociedade (Leila Pereira, 58).

Muito embora a necessidade de provar diariamente sua competência pelo simples fato de serem mulheres parece persistir, o que se aprende nas falas de todas as entrevistadas é a imensa desigualdade de gênero que ainda atravessa gerações. Por outro lado, também há uma enorme vontade de garra e luta para que esse jogo seja virado.

6. Conclusão

Diante de tudo que foi exposto e investigado, se pode dizer que os objetivos propostos foram elucidados. Facilitou-se a compreensão do leitor sobre o tema proposto, de apresentar o cenário da gestão do futebol no Brasil praticado pelas mulheres e sua “sub-representatividade” – termo usado por Monique Torga em alusão à pouca participação do sexo feminino nos anos de coleta de dados para a sua pesquisa acadêmica.

As evidências que se relacionam com as dificuldades encontradas por essas mulheres indicam que o futebol ainda se manifesta como um meio estruturante de uma hierarquia de gênero, no que diz respeito aos seus relatos sobre os constantes questionamentos e dúvidas acerca de sua competência para opinar, decidir e gerir quaisquer que sejam os aspectos inerentes as atividades dentro e fora do campo (TORGA, 2019, p.71).

Esses questionamentos, por outro lado, provocam um fenômeno identificado em algumas das entrevistadas, que é a de sentirem a necessidade de se capacitarem constantemente:

Quanto ao fator que contribui para a consolidação de suas carreiras e, também, apontada como uma possível solução para minimizar a invisibilidade de mulheres na gestão do futebol, bem como um aspecto fundamental para o sucesso no cargo, a capacitação foi apontada por todas elas como principal, corroborando com os dados estatísticos atuais apresentados pelo IBGE26 que mostra que as mulheres, de uma maneira geral, são mais instruídas do que os homens (TORGA, 2019, p.72).

Aumentar a participacao das mulheres na gestão do esporte só tem dois caminhos: oportunidade de contratação – que gerará experiência necessária para ocupar cargos mais altos – e capacitação. Nesta segunda, já temos uma bela iniciativa, caso contrário esse artigo não existiria. O artigo de Ferreira (2012) evidenciou que a principal forma de inserção no cargo ocorre por condução e convite, entretanto sua permanência é devida sua credibilidade e habilidade no trabalho.

Competência não é algo que falte para essas mulheres. A pluraridade da mulher moderna contribui para isso, pois elas assumem diversos papéis – como mulher, mãe, esposa, dona de casa, estudante, filha e neta, profissional, entre outros – e o fazem com maestria. Não seria leviano afimar que já nascem com essa capacidade de assumir multipapéis, multitarefas. Característica esta, fundamental, para posições estratégicas, cuja as tomadas de decisão, gerenciamento de crise e de equipes multidisciplinares, fazem parte do dia a dia.

Muito se fala do contexto histórico-social, que sempre colocou a mulher como sexo frágil e submisso. No entanto, a mudança de comportamento sociocultural ao longo dos anos, colaborou para a construção de sua autonomia, possibilitou mais independência econômica em relação aos maridos e/ou pais. Ademais, fez surgir novos formatos de familiares, como o de “mãe solo”, que acarretou no surgimento de uma mulher que não teve outra escolha, a não ser se manter forte e resiliente para sobreviver na sociedade ainda machista e dar conta de tudo.

No caso específico do futebol, elas representam uma resistência ao ocuparem os espaços tradicionalmente reservados para os homens e trazem estratégias eficazes para impactar diretamente na proporcionalidade desses grupos minoritários a que pertencem, abalando as estruturas de poder estabelecidas e questionando os discursos sociais instituídos. (TORGA, 2019, p.73).

Ademais, é fundamental que mais políticas públicas apareçam para que haja de fato, aumento da participação das mulheres na gestão esportiva de maneira geral. É valido lembrar que

O esporte, um fórum importante de oportunidades estruturadas e supervisionadas, abre as portas para o crescimento, a interação e o desenvolvimento de maneira muito semelhante a outras instituições socializantes, como escola e igreja (…) Além das habilidades tangíveis e físicas, o esporte pode ensinar e/ou reforçar um número de valores e atitudes (…) esse processo é denominado socialização esportiva e marca o começo do nível de relação psicológica com o esporte.

A socialização no esporte é um conceito que impacta não só a sociedade, como também fomenta o próprio mercado esportivo. Esse conceito é bastante interessante e importante para os profissionais do marketing esportivo, pois “representa uma oportunidade para moldar crenças, atitudes e comportamentos dos futuros mercados-alvo esportivos”

Por último e não menos importante, o que não faltam são exemplos de mulheres que atuam em diversas áreas do futebol e que lutam diariamente pelo respeito ao espaço já conquistado. O estudo realizado para elaboração desse trabalho revela que há poucos registros na literatura acadêmica acerca do tema. Assim sendo, esse estudo abre premissa para que novos levantamentos surjam e contribuam com o seu papel social de proporcionar material didático de qualidade e formador de opinião. A representatividade no meio científico é um caminho essencial para contribuir para uma mudança efetiva deste cenário.

Referências

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