O Futuro da Segurança Pública no Brasil
O evento “O Futuro da Segurança Pública no Brasil”, realizado pelo IREE e pela Trevisan Escola de Negócios, com apoio do CIEE e do Ibracon, no dia 30 de janeiro de 2020, reuniu grande público para assistir as apresentações de ilustres especialistas no tema.
Em seu discurso de abertura, o presidente do IREE, Walfrido Warde, destacou a importância de se estabelecer espaços como aquele para debater segurança pública e defendeu a redistribuição de renda, a educação e a solidariedade como recursos à violência. “Nada, senão um profundo rearranjo de nosso modelo existencial, a redistribuição de renda, a educação material de nossos filhos e filhas, a difusão da solidariedade e do amor serão capazes de alterar esse triste e vergonhoso estado de coisas.”
O Pacote Anticrime
O primeiro painel foi dedicado ao Pacote Anticrime aprovado pelo Congresso Nacional. Moderado pelo professor de Direito Penal, Pierpaolo Cruz Bottini, o painel contou com a participação do ex-ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, do presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), Fernando Mendes, e dos professores de Direito, Rafael Valim e Rodrigo Mudrovitsch.
O presidente da Ajufe criticou o fato do debate sobre segurança pública ter se concentrado muito nas questões sobre prisão em segunda instância e, mais recentemente, sobre o juiz de garantia. Segundo ele, é uma distorção do debate, que deveria ser focado mais no custo da violência. “Defendemos a necessidade de um modelo de Justiça Penal que reflita no contexto da segurança pública e que seja efetivo, garantindo o respeito à lei e aos direitos constitucionais”, afirmou Mendes.
“Para mim, o principal ponto em relação à figura do juiz de garantia é o debate limitador de poder essencialmente, um poder que repercute sobre o que temos de mais caro enquanto indivíduos: a liberdade”, ressalta o professor de Direito Público, Rodrigo Mudrovitsch, que considera que esse debate está bem encaminhado no Superior Tribunal Federal.
Para o professor visitante na Universidade de Manchester, Rafael Valim, é a partir da visão de um Estado que promove a equidade e se propõe a erradicar a pobreza que deve ser lida toda e qualquer política pública, especialmente a de segurança. “Em um contexto de aprofundamento das desigualdades e da marginalização, apresentar uma proposta que recrudesce as penas me parece um populismo penal que mais uma vez vai recair sobre os mais pobres, e os avanços serão limitados a uma parcela da Justiça Criminal.”
Em sua fala, Jungmann destacou que os jovens ingressantes no sistema prisional saem escravos das facções, sem serem atendidos por nenhum programa de reinserção na sociedade. “Somos vítimas e sócios do crime organizado porque insistimos em um modelo absolutamente falido. Não se faz uma nação para uma metade ou só para alguns, é preciso ter responsabilidade sobre esses jovens. E não estou falando de caridade, mas de políticas públicas”, afirmou Jungmann.
O moderador, Bottini, falou sobre a relevância do conteúdo aprovado, que deve impactar profundamente o sistema penal brasileiro. “É difícil inclusive identificar qual é a diretriz político-criminal dessa lei porque ao mesmo tempo que, em alguns aspectos, ela endurece e aumenta o direito penal, ela traz racionalidade em alguns procedimentos e uma série de novidades em pontos importantes como a colaboração premiada”, disse.
Combate à economia do crime
O segundo painel abordou o combate à economia do crime, com moderação de Renata Bianchi, diretora acadêmica da Trevisan, e participação do ex-diretor-geral da Polícia Federal, Leandro Daiello, do ex-secretário nacional antidrogas, Wálter Maierovitch, do desembargador aposentado Marco Antonio Marques e do jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudo sobre Violência da USP (NEV-USP), Bruno Paes Manso.
Manso falou sobre como a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) nasceu em paralelo a uma política de distribuição de unidades prisionais, que fortaleceu os chefes do crime, e da aposta no patrulhamento ostensivo que lotou as prisões. “Com o tempo, o negócio do PCC se espalha e passa a vigorar em todos os estados do Brasil.”
Maierovitch apresentou números sobre a economia do crime organizado fora do Brasil para mostrar a complexidade da questão: “O tráfico de imigrantes movimenta de 7 a 13 bilhões de dólares, a pedofilia, 5 bilhões, o tráfico de lixo, 15 bilhões. Só o tráfico de drogas representa de 3% a 5% do PIB mundial”. No caso da política antidrogas, o jurista defendeu a descriminalização do uso e lamentou que a questão não tivesse avançado no Brasil, apesar de tentativas durante os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
Marques criticou a cultura de tratar todos os problemas de conduta como crime no País. “A sociedade precisa aprender a se autorregular, o Direito Penal tem que ser a última fronteira.” O jurista defendeu que se deixe de pensar a economia do crime apenas como número, mas como uma questão de pessoas e de dignidade. “A criminalidade e o crime organizado atuam no hiato do Estado”, disse.
Daiello falou sobre como o crime organizado nasce a partir da busca pelo lucro e como a impossibilidade de resolução dos conflitos pelas vias legais leva à violência extrema, que atinge toda a sociedade. “O lucro do crime vai gerar um universo de pessoas envolvidas e vai gerar um confronto com o Estado, com concorrentes ou, até mesmo, com membros da própria organização, e isso gera outro universo de crimes.” Segundo o ex-diretor da PF, o enfrentamento é complexo e exige uma ação constante e de longo prazo, com investigação para chegar ao dono dos negócios, e ação policial para sufocar o mercado criminoso.
Crimes de intolerância
O terceiro painel foi dedicado aos crimes de intolerância relacionados a questões de gênero, raça e religiosidade. A moderação foi feita pela jornalista Maria Carolina Trevisan e os palestrantes foram a diretora do Instituto Marielle Franco, Anielle Franco, a diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Samira Bueno, o professor de Direito do Mackenzie, Adilson Moreira, e o coordenador do coletivo de Entidades Negras, Marcos Rezende.
Maria Carolina apresentou números do impacto da violência sobre os negros no Brasil: os negros representam 75% das pessoas assassinadas no País, em dez anos o homicídio de pessoas negras aumentou 33%, enquanto o de não-negras cresceu 3%, e os jovens negros têm 2,7 mais chances de serem assassinados que os jovens brancos. “Impossível falar de segurança sem falar sobre o racismo estrutural que vitima tantos homens negros e mulheres negras”, disse ela.
Samira também chamou atenção para esta questão como algo que se esconde por trás da redução recente dos índices de violência no País. Segundo ela, sem um diagnóstico bem feito, teremos retrocesso. “Os negros são cada vez mais os mais vitimados, porque a violência letal contra brancos cai proporcionalmente mais. Se por um lado há redução nos números da violência, por outro essa desigualdade racial se acentua.” A diretora do FBSP defendeu que é preciso investir em estratégias de prevenção ao crime, olhando para a juventude.
Moreira abordou a questão da racialização dos espaços sociais, que cria estereótipos e falsas generalizações que estão na base dessa desigualdade de impacto da violência. “Como podemos pensar uma política de segurança pública efetiva quando agentes estatais e, principalmente, as polícias militares são os principais agentes de insegurança pública?”, questionou Moreira. O professor também criticou o Pacote Anticrime e o denominou de Pacote Antinegro. “A criminalidade é um projeto social de uma sociedade estruturalmente racista.”
Rezende chamou atenção para o impacto do racismo sobre as religiões de origem africana e as conexões dessa violência com o crescimento das igrejas neopentecostais no Brasil. Segundo ele, historicamente, uma série de ações atingem elementos culturais que ajudaram a existência da comunidade negra no País. “O Brasil é um dos países mais intolerantes com religiões, mas não todas as religiões, é um racismo religioso, pois mais de 70% dos casos de violência religiosa que acontecem em nosso País são contra as religiões de matriz africana.”
Anielle Franco pediu por empatia e respeito e fez um relato emocionante sobre a trajetória em busca de respostas para o assassinato de sua irmã, a vereadora Marielle Franco, em março de 2018. Ela chamou o crime de feminicídio político e chamou atenção para as mortes de crianças, vítimas da violência no Rio de Janeiro. “Para mim, o futuro da política de segurança pública brasileira vai das autoridades descobrirem quem mandou matar minha irmã até a redução total de crianças e jovens negros mortos por essa retórica do ódio”, disse.
Políticas de segurança: estratégias e realidades em debate
O último painel tratou do tema políticas de segurança, estratégias e realidades e foi mediado por Antoninho Trevisan, diretor da Trevisan Escola de Negócios. Os palestrantes foram o senador por São Paulo, Major Olímpio (PSL), o delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone, a procuradora federal e ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Gonzaga, a pesquisadora do NEV-USP, Mariana Chies, e o secretário-executivo da PM-SP, Coronel Camilo.
Trevisan destacou o interesse da Escola de Negócios Trevisan em apoiar o debate sobre segurança pública. “Esse painel é um fecho dessa manhã tão emocionante. Sem segurança não tem negócios, não tem empresas, não tem comunidade, por isso uma escola de negócios como a nossa se interessa fortemente pelo tema.”
Coronel Camilo levou dados sobre a segurança pública em São Paulo e falou sobre sua visão de futuro à frente da Polícia Militar do estado. “Sempre é possível fazer mais e melhor com o que já temos”, disse. O secretário-executivo destacou a redução de índices de violência no estado, em especial o de homicídios, e refutou haver racismo na corporação. Segundo ele, desvios de conduta de policiais na abordagem à população são investigados e punidos.
A pesquisadora Mariana trouxe dados públicos sobre a criminalidade e destacou que a queda dos homicídios no Brasil tem ocorrido por múltiplos fatores. Dentre os fatores, estão políticas integradas de segurança pública entre estados e municípios, e alterações na dinâmica dos grupos criminosos organizados. Ela também chamou atenção para a redução de homicídios em São Paulo, hoje a menor taxa do País, mas lembrou que no mesmo período em que ocorre a redução, a taxa de homicídios de adolescentes de 15 a 19 anos oscilou de 19,1 para 19,6. “Se às crianças, ao adolescente e aos jovens a gente deve toda a prioridade das nossas políticas públicas e sociais, como diz a Constituição, também na segurança pública devem ser priorizados. Será que a gente pode parar de matar o futuro do nosso país?”
Zaccone explicou que o movimento Policiais Antifascismo busca trazer os operadores do sistema de segurança pública para o debate sobre o setor. Para se pensar o futuro da segurança pública, ele defendeu a reestruturação da polícia, como instituição de uma carreira única. “Estamos pensando o futuro com uma estrutura arcaica. E por que estamos discutindo o futuro da segurança pública e não da saúde, da educação, da moradia? Porque a segurança pública é um dispositivo de manutenção da ordem das relações sociais. Não é e nunca será de transformação das relações sociais”, disse.
A procuradora Eugênia Gonzaga falou sobre o seu trabalho com a Justiça de Transição, que é a retomada da legalidade após um período autoritário com medidas como abertura de arquivos, punição de responsáveis e construção de locais de memória. Segundo ela, essas ações são importantes para conscientizar e impedir a repetição dos ataques a Direitos Humanos. “Quando não se tem a transição, você não tem o restabelecimento completo da legalidade e tem a repetição dos atos do passado. Na Argentina, que fez o dever de casa, há uma tendência mais conservadora no governo, mas ninguém faz apologia à tortura nem abre mão da democracia, porque as pessoas sabem a gravidade. Infelizmente, no Brasil, não se teve isso.”
O senador Major Olímpio foi o último a se apresentar e fez uma defesa enfática ao Pacote Anticrime e à ação da polícia. Segundo ele, a legislação do País para a segurança pública está inadequada, com falta de regulamentação para a distribuição de atribuições das corporações. “Eu defendo 100% o Pacote Anticrime do Moro. Defendo o Pacote Anticrime, que é um pacote em defesa da sociedade, contra o criminoso”, afirmou. O senador também se opôs à legalização das drogas e defendeu a redução da maioridade penal para 16 anos.